Um flagrante da (in)Justiça no Brasil,



Do momento de uma eventual detenção em função de um delito até a hora em que obtém sua liberdade, o pobre tem seus direitos constantemente negados
Por Igor Carvalho da Revista Fórum
Durante um patrulhamento de rotina, na Praça da Sé, dois policiais militares prenderam um homem de 30 anos, que chamaremos de Pedro. Ele portava oito invólucros de maconha, totalizando 8,5 g, e R$ 20. As únicas testemunhas do flagrante foram os agentes que o abordaram. Pedro estava desempregado, morava na rua, tinha apenas o ensino fundamental completo e antecedente criminal, uma condenação por roubo e extorsão. Ao ser detido, confessou que a droga era para uso pessoal.
Em outro momento, dois jovens foram abordados, também em uma ronda, por outros dois policiais militares. Serão chamados aqui de Paulo e Mateus. Eles estavam dentro de um carro, na região de Perdizes, zona oeste de São Paulo. O bairro tem um dos melhores índices de desenvolvimento humano (IDH) da capital paulista, de acordo com o Atlas do Trabalho e Desenvolvimento da Cidade de São Paulo. É maior do que o da Noruega (0,965), por exemplo. Com os suspeitos, foi encontrado um tijolo de maconha (475,2 g), porções de cocaína (25,8 g) e uma balança de precisão. Paulo é estudante, está cursando o ensino superior, reside em Perdizes e não possui antecedentes criminais. Mateus é assistente administrativo, concluiu o superior completo, mora na Lapa, também zona oeste da capital, e não tem passagem pela polícia. Ambos confessaram na rua e na delegacia que a droga era para uso pessoal.
Nos dois casos, os envolvidos foram denunciados pelo Ministério Público no artigo 33 da lei 11.343 (chamada no meio jurídico de “Lei de Drogas”). Os três foram encaminhados ao Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), responsável por receber os autos de prisão em flagrante dentro do município de São Paulo.
Pedro, detido na Praça da Sé em novembro de 2010, foi mantido em cárcere como preso provisório durante os seis meses que antecederam seu julgamento, que ocorreu em maio de 2011. Foi condenado a cinco anos e dez meses de reclusão em regime fechado e 583 dias-multa, sem poder recorrer em liberdade. Sua defesa foi conduzida pela Defensoria Pública. Paulo e Mateus, presos em janeiro de 2011, foram defendidos por advogados particulares. Em nome de seus clientes, para confirmar a tese de uso pessoal, invocaram “o local e as condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias pessoais e sociais dos acusados”. Os jovens aguardaram nove meses pelo audiência de instrução, debate e julgamento. Durante todo o período, permaneceram em liberdade, ao contrário de Pedro, em que pese a quantidade de maconha achada com os dois ser quase 56 vezes maior. Até o fechamento do estudo, a sentença não havia sido definida pela Justiça.
Os dois casos relatados acima fazem parte de um relatório do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), vinculado à Universidade de São Paulo (USP), intitulado “Prisão Provisória e Lei de Drogas”, divulgado em novembro de 2011. E são exemplares de um sistema que diferencia as pessoas desde o momento de uma eventual detenção em função de um delito até a hora em que o condenado tem o direito à liberdade por ter cumprido sua pena.
“Isso é o flagrante do compromisso da Justiça brasileira com as elites.” A afirmação, referente ao tratamento diferenciado oferecido aos dois casos, é de José de Jesus Filho, advogado da Pastoral Carcerária. Em vista desses e de outros casos acompanhados in loco, ele é pessimista em relação ao sistema judiciário no País. “Em curto e médio prazos, o Brasil não irá reverter essa condição de preconceito na Justiça. O Brasil está perdido, completamente. Temos políticas contraditórias e discursos colidentes.”
Em parceria com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a Pastoral Carcerária desenvolveu um estudo que analisa a situação de uma camada da população carcerária no País: os presos provisórios. Hoje, eles representam 34% dos 514.582 mil prisioneiros brasileiros. O estado de São Paulo mantém, de acordo com números do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça, 180.059 mil pessoas encarceradas, 32% delas em situação provisória.
Perante a lei, quando alguém é preso, é presumidamente inocente, até que os fatos apurados atestem o contrário. Portanto, a princípio, deve aguardar em liberdade seu julgamento, a não ser que se entenda que a pessoa precise ser presa para que sejam coletadas provas para o inquérito ou processo, a fim de se preservar a ordem pública ou econômica. Mas a exceção se tornou regra. Em 2005, os presos provisórios no Brasil eram 91 mil, hoje são 173.818, um aumento de 91%. “Há uma cultura na sociedade brasileira, e os juízes, como integrantes desta sociedade, não fogem a essa cultura, de prestigiar a prisão cautelar e deixar o sujeito preso enquanto responde ao processo”, explica o juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Leonardo André Losekann, minimizando a possibilidade de recuo dos índices de criminalidade por conta do uso desse expediente. “O problema de misturar o preso provisório com o definitivo em um mesmo ambiente é o agravamento da situação, as influências e os comprometimentos que a prisão vão lhe trazer podem comprometer seu futuro.”
“Aqui, na cidade de São Paulo, quase todas as prisões em flagrante por porte de drogas ou crimes patrimoniais são convertidas em prisão provisória, um uso abusivo e inconstitucional”, aponta o coordenador auxiliar do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Bruno Shimizu. Ele acredita que manter o suspeito longe do sistema carcerário seria o melhor caminho, desde que se obedeça a algumas características. “Caso a pessoa não esteja atrapalhando o processo de investigação, se ela tem endereço fixo e se não ameaçou nenhuma testemunha, deve responder o processo em liberdade.”
A pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos de Violência da USP (NEV-USP), acredita que não existe, por parte dos juízes, uma análise individual dos suspeitos, prevalecendo uma avaliação genérica como regra. “Não sabemos o quanto os juízes distinguem um caso do outro, a gente percebe que eles, inclusive, usam um texto meio padrão no momento da sentença. Então, não sabemos o quanto estão preocupados em realmente analisar a situação de cada réu.” Quando perguntada sobre que benefício o sistema judiciário traz à sociedade ao manter preso o réu de um processo preso, ela é contundente. “Para falar a verdade, nenhum. A prisão provisória é apenas uma antecipação da pena.”
O cenário de excesso de presos provisórios mostra também uma evidente desigualdade no acesso à Justiça, que se relaciona a diversos fatores. “O Poder Judiciário funciona com juízes e servidores, mas é uma das pontas dessa engrenagem do sistema de Justiça, que é formado também pelas polícias, pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. Não são os juízes os responsáveis pelo ato da prisão, por exemplo”, sustenta Losekann, que cita um dado representativo. “Para os 180 mil presos no estado de São Paulo, existem, hoje, 500 defensores públicos.” Shimizu faz um rápido cálculo para detalhar ainda mais a argumentação do juiz do CNJ. “Desses 500, apenas metade está alocada na área criminal, isso significa que cada defensor tem sob seus cuidados 2 mil processos, que correm simultaneamente. Um advogado particular cuida de, no máximo, dez ou 20 processos”, explica.
Irregularidades no momento da prisão
Jesus Filho traça um perfil das pessoas presas em flagrante no Brasil, de acordo com as pesquisas realizadas pela Pastoral. “Ele tem de 18 a 25 anos, boa parte é usuária de drogas, praticou crimes patrimoniais e possui filho. O nível de ensino é fundamental incompleto, em geral são pessoas negras, a renda familiar é de no máximo três salários mínimos e, portanto, moradoras de periferia.”
O Instituto Sou da Paz divulgou, no último mês de junho, o relatório da pesquisa “Prisões em flagrante na cidade de São Paulo”, com dados coletados entre abril e junho de 2011 no Dipo, que centraliza todos os flagrantes da capital paulista e os distribui para as Varas Criminais. Conforme números do estudo, a Polícia Militar é responsável por conduzir 79,2% dos casos de flagrantes. As prisões realizadas na residência da pessoa (8%), pela lei, exigem que haja um mandado judicial. Porém, em 90,9% dos casos, não havia um mandado, é a chamada “entrada franqueada”. “Policiais dizem que alguns membros da família, ou o próprio réu, franquearam a entrada da polícia e permitiram graciosamente que os agentes entrassem na casa, o que legitima a ação. Isso parece inverossímil. Obviamente, se você tem drogas em sua residência, não vai convidar um policial para entrar”, explica o defensor Shimizu, para quem isso é reflexo de uma ação coordenada da PM nas regiões mais pobres da cidade. “Nas periferias é assim mesmo, os policiais entram de qualquer forma, não há respeito.”
Os números do estudo realizado pela Pastoral Carcerária e o ITTC se aproximam dos dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz. Das 371 pessoas atendidas pelo projeto “Tecer Justiça”, que foram presas em flagrante e estão detidas no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, 65,7% foram presas por policiais militares; dessas, 78,1% alegaram que houve violência policial no ato da prisão.
No que diz respeito à violência, Losekann confirma que o CNJ também recebeu denúncias de torturas. “A tortura, quando ocorre em delegacias ou mesmo dentro de uma viatura policial a caminho da delegacia, é muito difícil de ser provada, por medo das vítimas de testemunharem e serem perseguidas”, argumenta o juiz. “Há, infelizmente, uma mentalidade na sociedade de que preso pode ser torturado, que pode apanhar, e há uma espécie de conivência com esse tipo de postura dos policiais, que é, temos que deixar claro, absolutamente condenável.” Uma mulher relatou à Pastoral Carcerária que foi torturada no momento de sua prisão em flagrante, e Fórum teve acesso ao depoimento.
S.M. retornava para casa de carona com um amigo de seu filho, que lhe encontrou quando pagava uma conta no banco, momento em que o carro foi interceptado por uma viatura policial. Ao encontrarem um revólver no assoalho do automóvel, os policiais jogaram S.M. ao chão, torceram seu braço e, aos pontapés, chamaram-na de “macaca” e de “vadia”. Ela e o amigo de seu filho foram levados ao 16º Batalhão, onde a sessão de tortura prosseguiu: durante 3 horas, S.M., completamente desnuda, foi esmurrada e seviciada. O caso ocorreu em março de 2010, na região do Campo Limpo. Até hoje, após notícia-crime apresentada pela Pastoral Carcerária, tramita um procedimento interno no Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP) do Ministério Público, que ainda não ofereceu denúncia.
“A tortura é um problema crônico. Ela é diária. Essa semana fui visitar um cidadão preso, que estava no hospital, espancado por policiais. Semana passada, teve uma audiência de um menino que foi levado por policiais para um cemitério e extorquido, eles queriam R$ 500, senão, ameaçaram de matá-lo lá”, conta Shimizu. No depoimento a seguir, também dado à Pastoral, um jovem é espancado aparentemente só por ter antecedente criminal.
Por conta de uma tatuagem que ostenta no braço e por seus antecedentes criminais, R.A., preso em flagrante por civis, foi conduzido por policiais militares até os fundos da Favela Moinho. Lá, enterraram suas mãos e pés no chão para, na sequência, desferirem vários golpes, chutes e coronhadas. Ainda efetuaram um disparo de arma de fogo bem próximo à sua cabeça. Durante todo o tempo, era avisado de que iria apanhar mais e que seria morto. Chegou inconsciente à 77ª DP, tendo sido conduzido ao Pronto-Socorro do Hospital Servidor Público. O caso teria ocorrido em março de 2011. Foi submetido ao Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP) do Ministério Público, que entendeu que não havia elementos que justificassem a investigação.
Jovens como R.A., aliás, são dos principais alvos da violência policial. Um levantamento organizado pelo Instituto Sou da Paz, com base nos dados do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade da Secretaria Municipal da Saúde, mostra que 93% das mortes cometidas por policiais militares na capital paulista ocorreram na periferia, sendo que 59,8% tem entre 15 e 24 anos. “Há, em toda a sociedade, uma descrença em relação ao ECA – uma falsa sensação de que ele não é rigoroso com os adolescentes envolvidos em situações criminais – e talvez os policiais prefiram matar os jovens a encaminhá-los para o sistema, onde acreditam que nada acontecerá com eles”, comenta a coordenadora do estudo, Lígia Rechenbgerg. “Reitero: essa não é uma visão exclusiva das polícias, grande parte da sociedade legitima a violência porque acredita que tanto o ECA quanto a legislação penal brasileira são ‘frouxos’ demais com os criminosos (o que não é verdade).”
Várias audiências, uma mesma certeza
Estudo do Instituto Sou da Paz aponta que, de todos os casos de prisões em flagrante analisados entre abril e junho de 2011, 76,6% tiveram como testemunha no inquérito policial o próprio policial que efetuou a prisão. Na maioria dos casos, eles também são arrolados como testemunhas no processo pelo Ministério Público e, muitas vezes, seu depoimento é o único. “Observamos diversas vezes, em casos de flagrantes levados ao Dipo, que quando os policiais falavam: ‘Ele me disse, na rua, que a droga era dele’, o sujeito rebatia dizendo: ‘Eu não disse isso’. No final, sempre prevalece a versão do policial”, aponta Maria Gorete, que teve acesso ao Dipo durante três meses, de novembro de 2010 a janeiro de 2011.
“Isso é um problema muito grave e bem profundo. Praticamente não existe investigação, por conta do desaparelhamento da polícia”, explica Losekann, que alerta sobre os testemunhos dados por agentes de segurança após os flagrantes. “Se formos fazer uma análise aprofundada, percebemos que esses relatos de policiais são sempre iguais. Tanto que alguns juízes já começam a ter alguma reserva quanto aos depoimentos deles, especialmente no crime de tráfico de drogas: ‘Estávamos passando quando fomos avisados de que na casa tal, no local tal, estava se traficando drogas, chegamos no local e verificamos que…’. É sempre o mesmo relato, é unívoco o discurso.”
Se considerarmos o estudo do NEV-USP, sobre prisão provisória, vamos observar que apenas 9% dos presos provisórios conseguem subverter a lógica estabelecida na pré-condenação. Ou seja, 91% dos suspeitos submetidos à condição de preso provisório são efetivamente condenados. No mesmo documento, o NEV explica o porquê do alto índice de condenação. “Foi possível verificar que a audiência de instrução e julgamento é, comumente, a repetição da colheita de depoimentos e do interrogatório realizados pela autoridade policial. Participam as mesmas partes, geralmente a defesa arrola uma ou duas testemunhas, que pouco têm a acrescentar sobre o fato em si. Salvo situações em que os policiais que efetuaram a prisão não se lembram do fato, o que não é raro, até mesmo em virtude do tempo entre a ocorrência e a audiência, a confirmação dos fatos descritos no inquérito, sem maiores detalhes, basta para que haja uma condenação.”
O depoimento de um policial, ao NEV-USP, que não revela a identidade do agente, talvez explique o descaso com que esses presos provisórios são tratados. “Os juízes e promotores fazem sempre as mesmas perguntas. Geralmente a gente guarda o BO [boletim de ocorrência] da polícia civil ou lê o BOPM [boletim de ocorrência da Polícia Militar]. É difícil lembrar os fatos, você prende tanta gente que não vai lembrar.” E essas audiências são, em grande parte, também marcadas pelo depoimento de policiais contra os suspeitos que eles mesmos prenderam. “No momento em que o juiz invalida o depoimento do réu que desmente o policial porque estaria agindo em autodefesa, esquece que o policial também está agindo em autodefesa, já que não pode invalidar sua ação na rua, não pode se desdizer”, afirma Shimizu, lembrando que mesmo as testemunhas do réu são estigmatizadas nesse processo. Ele relata o que vê, como defensor, do tratamento dispensado aos detidos em caráter provisório. “Quando a defensoria traz testemunhas, são pessoas do mesmo círculo social do réu, é a mãe, a vizinha, enfim, pessoas extremamente pobres. É recorrente que os juízes coajam essa testemunha, isso quando não pedem a instauração de inquérito por falso testemunho.”
Maria Gorete lembra que viu “inúmeras vezes” juízes submetendo réus a tratamento humilhante. O coordenador auxiliar do núcleo de Situação Carcerária revela que há uma certa diretriz ideológica dentro do sistema de Justiça. “O Judiciário pune crimes cometidos por pessoas pobres, como furtos, roubos e tráfico de drogas, que levam cerca de 80% dos pobres para os presídios paulistas. Em compensação, em outros delitos como crimes fiscais ou os crimes do colarinho branco, a postura do Judiciário tende a ser mais leniente. Trata-se de uma posição ideológica, de querer reprimir um segmento da população, pobres, negros e moradores da periferia”, conta Shimizu.
O país que pune
O Brasil tem a quarta maior população prisional do mundo, ficando atrás somente de EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhões) e Rússia (740 mil). Conforme dados da Pastoral Carcerária, de 2011, 60% de toda essa população encarcerada é formada por pessoas negras e 71% está presa por crimes contra o patrimônio e tráfico. A superlotação dos presídios paulistas é alarmante. Segundo dados do Depen, o déficit é de 62.574 vagas. Nesse contexto de ambiente superlotado, “podem se proliferar doenças, uma vez que não temos, nas unidades prisionais, visitas médicas”, analisa Jesus. Para a Pastoral Carcerária, essa condição de superlotação coloca o preso em condição de vítima de tortura.
No último dia 14 de junho, o Brasil divulgou o relatório produzido pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), órgão vinculado as Organizações das Nações Unidas (ONU), que considera o país um “fracasso generalizado” quando o assunto são direitos humanos dentro das unidades prisionais. A delegação esteve no Brasil durante 19 e 30 de setembro de 2011. Foram visitados institutos socioeducativos, delegacias, casas de detenção, penitenciárias e clínicas de tratamento de dependentes químicos, em quatro estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Espírito Santo. “O SPT reitera sua preocupação e a recomendação, expressa pelo relator especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias e Arbitrárias, que prisões devem ser administradas pelos carcereiros, e não pelos presos”, diz a avaliação final do órgão.
Tentando corrigir as falhas provocadas dentro de um sistema que se provou, até aqui, falho, o CNJ organizou, em 2010 e 2011, mutirões carcerários, que permitiram a libertação de mais de 22 mil pessoas que estavam presas irregularmente no sistema prisional brasileiro. É chamada de irregular “a situação de presos que já cumpriram a pena e estão ainda dentro das prisões ocorreu e ocorre em vários estados da federação. O caso mais comum é de permanência na prisão em regime incompatível com o que foi determinado na pena, por exemplo: ele foi condenado ao regime semiaberto e está no fechado, ou, sendo condenado no fechado, já poderia ter progredido para o semiaberto e não foi”, afirma Losekann. A equipe coordenada pelo juiz produziu um documento com algumas recomendações ao sistema judiciário, nele há relatos que indicam um sistema relapso em suas responsabilidades.
São comuns os depoimentos de presos com penas duplicadas, assim como é recorrente o caso de pessoas encarceradas que, por falhas administrativas, não têm direito à progressão de regime. Ao final, o CNJ faz uma recomendação especial ao Tribunal Superior de São Paulo (TJ-SP). “Verifica-se a necessidade de o TJ-SP capacitar permanentemente os servidores que atuam nas Varas de Execução Penal, a fim de minimizar problemas.” Em uma crítica direcionada ao estado mais rico da União, São Paulo, o órgão sentencia. “Pode-se afirmar, sem qualquer dúvida, que os presos no estado de São Paulo encontram-se praticamente sem possibilidade de defesa na esfera da execução penal, salvo aqueles presos privilegiados que possuem defensor constituído”, reafirmando a lógica de descriminação social, por parte do Judiciário.
O defensor público Bruno Shimizu sintetiza o que parece ser uma sentença, essa sim definitiva, do sistema de Justiça paulista. “Os valores das nossas instituições estão construídos sobre as mesmas instituições que vigoravam e que tocavam a política durante a ditadura militar. Não há garantias de proteção para quem age contra esse sistema, simplesmente porque se você é pobre, negro ou vive em periferia, o sistema não foi feito para lhe proteger.” F

Um exemplo entre muitos
A.P.L. tem 32 anos. Desde os 14, convive com as drogas. Dependente químico, passou boa parte da vida entrando e saindo de unidades prisionais. O motivo é sempre o mesmo: furto. “Os furtos são, sempre, para financiar o consumo de drogas”, explica sua irmã, que prefere não se identificar. No último dia 17 de abril, foi preso. Novamente, o Estado o devolveu para uma unidade prisional. Há quase três meses, A.P.L. está no Centro de Detenção Provisória 1 de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A irmã só ficou sabendo da prisão porque, excepcionalmente, havia na unidade em que ele está preso um mutirão carcerário em curso, realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
O fato alegado para a prisão: furto de materiais elétricos, um cabo e três luminárias, segundo o boletim de ocorrência. A.P.L. é carroceiro, como tal, se sustenta recolhendo na cidade todo e qualquer material reciclável. Recentemente, vendeu sua carroça para consumir drogas. Sem um veículo para transportar a carga que recolheu, A.P.L. alega ter depositado todo o material em um terreno abandonado, sem saber que pertencia a um condomínio que fica ao lado. Ao retornar, com um carro, para retirar sua carga, foi detido pelo porteiro de um dos prédios, que teria denunciado o furto ocorrido no terreno.
“O caso dele é sintomático do que ocorre com o sistema penal em geral. Apesar do discurso de combate à criminalidade, o que se faz, na prática, é punir exatamente aqueles que mais precisam de respaldo social. É óbvio que a prisão jamais resolverá o caso de alguém que furtou para bancar seu vício. Na verdade, ela tende a agravá-lo”, acredita Rodolfo Valente, militante da Rede 2 de Outubro, conjunto de organizações e movimentos sociais que entende que a dinâmica que resultou no massacre do Carandiru continua vigente no sistema carcerário.
“Criminalizar a pobreza para servir a interesses privados parece ser mais importante do que prover a essas pessoas meios de superar o vício e de se emancipar.” A.P.L. será julgado ainda nesse mês de agosto. Segue como preso provisório até a audiência.

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